Aqui em casa, remexendo meus antigos arquivos de texto no computador, encontrei raridades.
Dentre elas, uma crônica que rascunhei no dia 7 de outubro de 1999, durante minha primeira estadia (de apenas dez meses,como turista) em Israel.
Ela nunca chegou a ser escrita totalmente, finalizada ou muito menos publicada num jornal qualquer.
Alguns recursos literários foram alterados no sentido de reproduzir técnicas utilizadas por João do Rio em “A Alma Encantadora das Ruas”. O estilo é basicamente o mesmo, porém transportado para os dias de hoje. Perdoem-me pelo tamanho do post. Ficará um pouco grande...
MEU AMIGO SOLDADO
“Notícias são histórias esperando para serem contadas.”
Moacyr Scliar
Às 7 da manhã, três veículos rebuscados se aproximavam do centro de estudos latino-americanos na cidade sagrada de Jerusalém. Eu resolvera participar do passeio junto com argentinos ressacados, uruguaios dignos de manicômios, costarriquenhos incomunicáveis e outros brasileiros, por que não. Ao lado dos veículos, três ônibus por sinal, vinha a nosso encontro um comboio de soldados armados até os dentes. Acreditamos no momento que todo cuidado era pouco se o objetivo era visitar Hebron. Se é que o melhor verbo para ir até Hebron não é visitar. Pelo contrário. Um dos responsáveis dissera-me:
- O ônibus é blindado. Entre que temos que passar os procedimentos de segurança.
E eram mesmo blindados, do início ao fim. Janelas reforçadas com aço, buracos na lataria para que canos de metralhadoras pudessem ser encaixados e espaço para que, se necessário, nos jogássemos no chão. Uma atmosfera sufocante. Mereceu fotos. Um bando de latinos desenfreados corria para o ônibus como se fosse uma passagem para o paraíso. Subi as escadas encardidas do blindado e percebi um soldado sentado na primeira poltrona. Vestia roupas verdes, um par de botas negras de cano alto e um solidéu trançado na cabeça. A cabeça, como fonte da moral, representa para o judaísmo a parte mais importante do corpo humano. Cobrindo a cabeça, são lembrados da onipresença divina e conscientizam-se de que a humildade é a essência da religião. Estendi-lhe a mão.
- Bom dia! Posso me sentar?
Ele estendeu a mão. Israelenses nativos são conhecidos por sabras. Sabra é o nome em hebraico de uma fruta pouco conhecida no Brasil chamada figo-da-índia. Uma metáfora, como não podia deixar de ser. Essa denominação “sabra” é dada aos judeus nascidos em Israel porque, no projeto sionista, eles seriam ásperos por fora e doces por dentro. E são, por fora. Gente preparada para a autodefesa, contrapondo-se ao judeu fraco da Diáspora européia devastada pelos genocidas.

O ônibus se preparava para partir. O soldado tirou seu fuzil M-16 do chão e colocou no colo. O Estado de Israel, que aprendeu a dividir seus períodos históricos pelas guerras, vive um tempo estranho, posterior ao assassinato de Rabin e a uma guerra que não houve. Imersos num conflito, sim, e dos mais sangrentos. Mas guerra não. Tentei puxar conversa.
- Por que um ônibus blindado?
- De onde você é? – resolveu abrir a boca meu companheiro de poltrona.
- Brasil!
Respondi com a cara mais limpa do mundo. No momento, umas três pessoas já se aproximavam das nossas poltronas e ficaram escutando. Um grilo poderia ter sido ouvido durante uns 30 segundos antes da resposta do soldado.
- Para que você possa voltar ao Brasil.
Ah, entendi. O ônibus blindado é para que não tenhamos risco de morrer. Bela maneira de iniciar uma conversa.
Os gastos com a defesa por parte de Israel são brutais, cerca de 8% do PIB de US$ 100 bilhões em 1997. Israel talvez seja o país que mais discute seus problemas no mundo. Na televisão, no rádio, na universidade, na rua: cada um tem sua opinião e não sente o menor receio nem inibição em defendê-la, num reflexo saudável da tradição dialética do Talmud. Essa pujança também se manifesta na prática. Saídas são procuradas obsessivamente.
Até onde isso pode chegar, ninguém sabe. O escritor Yoram Kaniuk, que já comparou o país a um misto de piquenique e loucura, escreveu um artigo propondo a volta da antiga separação entre Israel e Judá. Israel seria de Tel-Aviv para cima, e Judá, Jerusalém e arredores. Com isso, teríamos dois universos diferentes, judeus laicos em Israel e religiosos em Judá. Evidente, trata-se de um artigo humorístico, porém esclarecedor. A sugestão de Kaniuk revela a contradição estrutural do Estado.
Mas íamos mesmo à Hebron. Por volta do século XVIII a.C., Abraão veio de Ur, no sul da Mesopotâmia, para a terra de Canaã. Ele se estabeleceu nas cercanias do Vale do Jordão. Visto que nem o Velho e nem o Novo Testamento não haviam sido revelados durante sua vida, Abraão não era nem judeu nem cristão, mas um crente na unicidade de Deus. Agar, a concubina de Abraão, lhe gerou seu filho Ismael, de quem os atuais muçulmanos traçam sua descendência; entrementes, sua mulher Sara gerou-lhe o filho Isaac, do qual os atuais judeus traçam sua linhagem. Abraão se mudou para um lugar perto de Hebron, onde viveu pregando o monoteísmo. Quando morreu, Ismael e Isaac sepultaram-no na mesma cova onde sua mulher Sara foi sepultada. Seu filho Isaac gerou Jacó.

- No passado, Hebron era chamada Kyriat Arba. Significa "cidade dos quatro", já que ela era divida entre quatro clãs.
Quem diria! Nosso amigo resolveu dar o ar da graça!
- Há quem acredite que lá foi a pátria de Adão e Eva, mas não existem estudos que provem essa teoria.
Parece que o sério e controlado soldado, mais auto-compenetrado que sua M-16, queria conversar. Mais três ou quatro pessoas saíam de seus bancos e se dirigiram à parte da frente do ônibus. Já que o soldado tinha um solidéu na cabeça, era religioso, devia saber um pouco de história bíblica. Sei lá.
- Quando Sara morreu em Hebron, em 1881 aC e com 127 anos, foi necessário que Abraão comprasse um lugar de sepultamento, pois ele era apenas um residente forasteiro que não possuía terreno algum em Canaã. Assim, comprou dos filhos de Hete um campo, com sua caverna, em Machpelá.
Era o local que estávamos indo visitar. A Mearat Hamachpelá: a caverna de Machpelá; o túmulo dos patriarcas. Lá estão enterrados três casais: Abraão e Sara, Yitzhak (Isaac) e Rivka e Yaacov (Jacó) e Lea. Metade do ônibus já havia se aglomerado em volta de nós.

Meu amigo soldado se cala novamente e abre um jornal. Parece de propósito. Na capa, estampada em letras garrafais, a manchete: “Exército derruba 22 casas em Hebron”. Todos que estavam em volta das nossas poltronas conseguiram ler. E mais: perceber o recado que o soldado queria passar. O cano da M-16, fria e serena ainda em seu colo, ainda apontava para o corredor. O homem despertou novamente.
- Semana passada, palestinos mataram 12 dos nossos, agentes da polícia de fronteiras e colonos quando estes se dirigiam à sinagoga da Machpelá.
- Podemos visitar todos os túmulos? – pergunto, ingênuo talvez.
- Não. Alguns estão na parte árabe. Podem ver o de Abraão e o de Jacó. O de Itzhak está com eles.
Bom, então não. O comboio chega a Hebron. Meia hora de viagem, quarenta minutos no máximo, tempo suficiente para que uma conversa de poucas palavras com um sabra despertasse a atenção de outras 30 pessoas. Todas ensanduichadas, apertadas, se acotovelando para ouvir o soldado falar.
Voltamos no fim do dia. Ouvi alguns argentinos comentando que não iriam contar aos amigos e à família sobre como é Hebron. Entendi o argumento. Querem que todos vejam com seus próprios olhos, pensar em qual seria o limite de um ser humano em se tratando de outro.
Resolvi viajar e visitar, na mesma noite da volta para Jerusalém, alguns amigos no sul do país. Em vez do ônibus, escolhi o serviço de lotação. Preferi ser cauteloso e, assim, evitar presenciar um atentado como outros que já haviam ocorrido. No interior da perua observo, com ironia, a existência de oito árabes que também utilizam o serviço de lotação para evitar constrangimentos, como revistas repentinas na rodoviária. Na perua, apertados nos bancos, viajam árabes e judeus tentando proteger-se, cada qual com seus motivos. Um fugindo do outro para o mesmo lugar. Quando os árabes descem, uma mulher, trabalhadora estrangeira, chama aquele que esquecera a pasta embaixo do banco e pergunta irritada, em inglês:
- Ei, isso não é seu?
Ela não teve tempo de aprender hebraico, mas já entendeu muito bem o que significa o aviso constante em placas pedindo atenção para objetos suspeitos. Podem ser bombas.
Porque todo cuidado é pouco, e toda intolerância é demais.